"Auto-Proclamados Mestres" no Paganismo

por - julho 30, 2020


Unsplash (Nayanika Mukherjee)

Hoje trago um tópico que sinto que deve ser abordado e que é um tema importante de falar abertamente nas nossas comunidades pagãs.  Vamos então começar a falar deste tema díficil, que já foi abordado parcialmente no artigo dos Os Cuidados nas Comunidades Pagãs.

É expectável que todos os praticantes, mais cedo ou mais tarde, se deparem com (pseudo e auto-proclamados) "Mestres" que prometem resolver todos os nossos problemas, ensinar-nos tudo o que sabem e elevar-nos a grandes alturas de conhecimento e domínio de nós próprios (e até de outros!). Através de falas mansas, um discurso carismático e promessas vazias, estas pessoas são excelentes a manipular outros e a convencer quem quiserem de que não só têm uma enorme fonte de poder (muitas vezes, argumentada como sendo hereditária de uma tradição familiar que, coincidentemente, não tem como ser comprovada dado que o familiar já morreu) e que estão dispostos a ensinar-nos este conhecimento secreto. Muitas vezes, em troca de algo. Seja favores monetários, sexuais ou até de trabalhos a serem realizados, estes predadores aproveitam-se daqueles que querem obter conhecimento para manipular e abusar das pessoas. 

Promessas como conhecimentos secretos, participação em tradições hereditárias antigas (muito embelezadas com histórias de práticas dos seus avós e bisávos em rituais pagãos orgiásticos em pequenas aldeias), utilização de informação obtida online, utilização de termos complicados que, para iniciantes, podem parecer legítimos (como misturas de informações relacionadas com Alta Magia ou Magia Cerimonial), entre muitas outras tácticas são formas como estes pessoas fazem-se parecer conhecedoras da Arte e de confiança. Muitas vezes, estas pessoas trabalham em grupos, recrutando pessoas e convencendo essas mesmas pessoas a recrutar outras. Afinal, quantos Mestres destes é que não se encontram rodeados por um aparente grupo de devotos que os seguem de forma cega e inquestionável? Homens que se dizem Sacerdotes e Anciões  que insistem em iniciar jovens mais novas e inexperientes (senão completamente desconhecedoras de outra prática mágica que não a do "Mestre")? Ou até o oposto, mulheres que se auto-entitulam Altas-Sacerdotisas que estão rodeadas de jovens inexperientes e impressionáveis que não questionam nem a sua autoridade nem os seu comportamento. Aliás, a maioria destas pessoas não estão inseridas nas comunidades pagãs. Este é um dos primeiros sinais. 

Um dos principais pontos importantes em entender quando estamos a escolher ou encontrar um grupo para nos inserirmos em termos de trabalhos mágicos é entender qual a relação deste com o exterior e as comunidades em redor. Mesmo em Portugal, em que as comunidades pagãs são escassas e distantes umas das outras, há sempre alguma ligação e todos conhecemos ou ouvimos falar uns dos outros. Por isso, é sempre importante falar com pessoas de fora e entender: Há alguma suspeita das actividades desta pessoa? A sua linhagem é confirmada ou é apenas indicada pelo próprio? As suas práticas são éticas? Nós enquanto comunidades temos o dever de nos proteger mutuamente e falar mais alto dos que os abusos. Numa época em que o #MeToo reina no Mundo também nós, nas comunidades pagãs, temos de falar bem alto e proteger os nossos membros destes predadores. 

Outro dos principais pontos e argumentos utilizados por estes elementos é o "secretismo". Ou seja, a tradição de que veêm é uma tradição secreta (muitas vezes hereditária) e não deve ser contado a ninguém! Nem a própria presença no grupo pode ser contada por causas dos "riscos para o grupo". A questão importante aqui é... Estamos em 2020. Não estamos em 1540 ou 1780 ou qualquer ano durante a Inquisição. Estamos em pleno século XXI e, honestamente, ninguém quer saber da religião de outras pessoas ou que as mesmas fazem na sua vida privada. Se o secretismo é importante em algumas tradições pagãs, devido aos seus mistérios? È. Se o mesmo deve ser utilizado como ferramenta de manter as pessoas isoladas das comunidades em seu redor e dos seus sistemas de apoio? NÃO! Eu irei abordar, num artigo futuro, a importância e o papel do secretismo nas comunidades pagãs e posterimente irei linkar o mesmo neste post, contudo, é preciso referir que o secretismo necessários nos caminhos pagãos não é o mesmo de à 400 anos atrás. Este secretismo deve ser o secretismo das práticas, ou seja, de quais os métodos de trabalho utilizados e quais os conhecimentos obtidos. Não o facto de alguém participar ou não de um grupo. Não podemos deixar que as vítimas de abuso sejam silenciadas com o argumento do "secretismo" dentro do Paganismo ou da Bruxaria. 

Outro indicador deste perfil predatório é a conspiração do mundo e de outros grupos ou pessoas que os perseguem e que lhes querem fazer mal, muitas vezes uma perseguição mágica que só eles sentem e que usam como motivo para proteger os devotos e o secretismo dos seus caminhos místicos. Usar um poder externo como ameaça constante ao grupo para manter o grupo controlado e para justificar o secretismo e os rituais de "protecção" ou "vingança" que precisam ser feitos (muitas vezes com diversos sacríficios por parte dos praticantes envolvidos). É a famosa táctica do "nós contra eles", utilizada dentro de um grupo pagão com o objectivo de manter o controlo dos envolvidos. Este discurso é também aproveitado para criar a sensação de "família" e fazer com que o "Mestre" tenha controlo e presença em todos os pontos da vida do praticante, inclusive as coisas fora do prisma religioso e mágico, ajudando a isolar ou impedir a ligação com as pessoas da vida do praticante que estão fora da comunidade (família, amigos, etc.). 

Isto vê-se também nas ameaças feitas se tentarem sair. Ao tentar abandonar estas pessoas há o confronto de que os praticantes estão a abandonar o Mestre ou Sacerdote e que há consequências. É muitas vezes utilizado o argumento de que o compromisso feito (através dos rituais de iniciaçãomuitas vezes apressados na entrada do grupo ou na relação com o Mestre) foi feito para a vida e é inquebrável, sendo que se for feita alguma tentativa de quebrar o mesmo, as consequências caem sobre o praticante com ameaças sobre as famílias e aquilo que os praticantes têm como de mais importante na sua vida. Este controlo e constante método de castigos e ameaças é uma das principais formas de manter o praticante dentro este círculo fechado. 

Os principais alvos destas pessoas são os iniciantes no Paganismo, dado que os mesmos têm poucos conhecimentos, a maioria tem poucos recursos (ou não sabe como utilizar os recursos que tem) e poucos contactos dentro das comunidades aos quais possam perguntar se o que está a acontecer é certo ou não. Moldar o pensamento de um iniciante é extremamente fácil, tal como levá-lo a acreditar que X e Y são as "verdadeiras" formas de praticar. Como falei no artigo de Prática Solitária e Prática em Grupo não há forma certa de praticar Paganismo e Bruxaria. Todas as formas de prática são válidas à sua maneira. 

Contudo, até os praticantes já com algumas experiência podem estar sujeitos a cair nestes cenários, daí eu querer falar abertamente sobre este tema. Precisamos de abertura nas nossas comunidades para evitar que estes comportamentos e estes predadores possam estar a magoar as pessoas que chegam ou estão no Paganismo e na Bruxaria. 

Pode parecer um comportamento muito parecido aos famosos "cultos" que ouvimos nos filmes e nos media mas é real e acontece mesmo debaixo do nosso nariz, sem sequer repararmos. E temos de chamar as coisas pelos nomes. Estas pessoas não são praticantes de Bruxaria e Paganismo. Não são caminhos dentro do Paganismo ou caminhos dentro da Bruxaria. São cultos abusivos e manipuladores e estas pessoas são predadores! E não podemos permitir a sua presença e os seus abusos nas nossas comunidades.  

A todos os iniciantes ou praticantes que possam estar nestas situações ou a entrar nas mesmas, as minhas palavras de apoio e conselho são as seguintes: 
  • Questionem tudo. Não tenham medo de fazer perguntas idiotas (aliás, se alguém vos fizer sentir mal por alguma pergunta que façam, é um sinal de que essa pessoa não é a certa para vos ajudar). Perguntem, questionem, duvidem, verifiquem online ou com outras pessoas, etc. Não tenham medo de verificar os conhecimentos e as informações que vos dão. Seja um autor famoso ou o vosso vizinho do lado, confirmem as informações que vos são dadas. Temos a internet ao nosso dispor e um enorme leque de recursos que nos podem ajudar. Adicionalmente lembrem-se que não existem verdades absolutas. 
  • Se não se sentirem confortáveis com algo não o façam. Conheceram alguém que vos diz que pode ensinar sobre Paganismo mas que vocês têm de ser iniciados sem roupas, mas vocês não se sentem confortáveis? Não o façam. Ninguém mas NINGUÉM vos pode obrigar a fazer algo que não querem, seja beber vinho, rituais em nú ou fazer uma dança. Seja o que for, se não se sentem confortáveis, não o façam. E se as pessoas disserem que, sendo assim, não podem fazer parte daquela tradição, óptimo. Vão se embora porque de certeza que aquele seria apenas o primeiro de muitos sacríficios que seriam obrigados a fazer. Há imensas tradições, caminhos e pessoas por esse mundo fora. Não tenham pressa para encontrar o sítio certo.
  • Se tiverem medo ou dúvidas, recorram a ajuda. Enviem e-mail para alguém que vocês conhecem ou até que seguem online. A maioria dos sites e organizações como a PF, FOI, etc disponibilizam contactos para ajudar e orientar quem precisa. No meu caso, disponibilizo o e-mail do ICT para ajuda e orientação e esclarecimentos de dúvidas (100% confidenciais). Posso também recomendar a Sacerdotisa do Templo Sumério de Inanna E-An.Ki que gere o Ecos - Comunidade Pagã e que pode ser contactada por e-mail (100% confidencial). Não tenham medo de questionar e perguntar se algo é normal. Mesmos que vos digam "isto não pode ser contado fora daqui", se sentirem medo ou dúvida, perguntem. Estamos aqui para ajudar, nunca para julgar. 
Este é um tema que é muito sensível para mim e planeio abordá-lo mais vezes. É preciso termos abertura e falarmos destas coisas nas comunidades, pois apenas expondo estas pessoas e as suas técnicas predadoras, podemos manter as nossas comunidades seguras. 

Vamos trabalhar para um Paganismo mais seguro! 

Notas: Obrigada às minhas irmãs da Arte a Alva Möre e à Joana Martins pela revisão e ajuda neste artigo que me é tão sensível. 

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