Entrevista: Alva More

por - novembro 04, 2021

Olá a todes!

Hoje começamos um novo tipo de artigo aqui no blogue e vamos ter uma entrevista, com uma pessoa muito especial! :) 

A Alva Möre, ou Mariana Vital (ela/dela), é uma amiga minha de longa data dentro das comunidades pagãs e o seu trabalho é simplesmente fantástico. A Mariana é uma Mãe Pagã e Sacerdotisa Lu-mah no Templo de Inanna, é Interfaith Coordinator pela Pagan Federation International (PFI) e co-fundadora do Grupo de Estudos do Paganismo em Portugal (Área de Ciência das Religiões da Universidade Lusófona). Tivemos o prazer de trabalhar juntas no podcast Akelarre, no Seminário de Bruxaria de Cozinha da Comunidade Paganices e, também, no Ecos - Comunidade Pagã

O seu trabalho para as nossas comunidades é indispensável e é exactamente por esse motivo que quis começar pela Mariana, na nossa série de entrevistas. Abaixo deixo listados os seus links e projectos para que a possam visitar. 

Nome: Alva Möre ou Mariana Vital
Blogue "Crónicas de uma Mãe Pagã"https://maepaga.blogspot.com/
Ecos - Comunidade Pagãhttps://egregorapaga.blogspot.com/ 

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  • O teu trabalho é muito focado no panteão sumério e na Senhora Inanna. Pessoalmente como descreverias a tua prática e o teu caminho espiritual?
Os dois pés que me levam no meu caminho espiritual são as tradições religiosas mesopotâmicas e mediterrânicas e a bruxaria caseira e tradicional que herdo das minhas ancestrais. Aplico frequentemente ferramentas de ambas as abordagens nas minhas práticas quer devocionais quer de conjuro. Ambas  são profundamente guiadas pelos meus valores enraizados no paganismo e feminismo (para mim deveriam ser sempre sinónimos mas nem sempre é o caso porque há vários paganismos), e procuro trabalhar para um bem coletivo maior seja através de iniciativas que promovam o estudo e o reconhecimentos/visibilidade dos politeísmos e da bruxaria (históricos e contemporâneos/modernos); que defendam a liberdade religiosa e a liberdade de expressão (sem as quais a democracia morre e que nos permitem hoje ser o que até ao século passado era crime: diversidade espiritual e religiosa); que promovam a equidade e a cura como o sagrado feminino.

  • Sei que o Sagrado Feminino é também um tópico que te é íntimo. O que te atrai no trabalho com a Sacralidade Feminina? 
O Sagrado Feminino apela-me profundamente porque representa o reconhecer de uma legitimidade que equilibra muito a balança do poder que sabemos estar desequilibrada: o feminino enquanto universo de sagrado que eleva o feminino à sua potência natural de soberania e agência. O universo religioso atual, mantendo a tendência da nossa civilização, exclui o feminino das lideranças que mantêm, inspiram e promovem o padrão de poder. Durante muito tempo, o feminino enquanto elemento do sagrado, refugiou-se nas margens do institucional que, do seu lado, tem vindo a recusar o espaço que lhe é natural.
O Sagrado Feminino, é um step up da Bruxaria nesse sentido. Já não é contido nas margens, já não procura a invisibilidade como espaço privilegiado de ação (quer porque o oculto lhe concede poder, quer por necessidade de sobrevivência). O Sagrado Feminino enfrenta o Sagrado Institucional e exige a paridade que lhe é de direito. Reconquista e resgata os conceitos que o vestem de autoridade e legitimidade como o papel das Sacerdotisas e desenvolve a teoria que sustenta a sua cosmovisão com a Tealogia (de Thea-logia, estudo da Deusa). Quando o feminino é visto como fonte de poder, a transformação profunda é autorizada a manifestar-se, e vemos então o processo da cura a ter lugar. A cura interna do que carregamos dentro de nós relativamente ao feminino, às suas representações e expectativas, às suas personagens e protagonistas, em todos os planos: histórico, cultural, social, político, espiritual e religioso, familiar e mesmo íntimo. Uma das potenciais ações mais transformadoras que reconheço no Sagrado Feminino é a relação com e entre mulheres. A procura da Sororidade, do Círculo como abrigo e fortaleza, como laboratório das relações umas com as outras e connosco mesmas. Esta ação imediata, foi promovida a partir da premissa do Sagrado Feminino que autoriza o Feminino a curar-se a si próprio, a resgatar o seu poder e a assumi-lo como parte da nossa vivência. E daqui podem nascer novas expectativas, mais saudáveis, nas relações entre nós e o mundo. O ambiente de profunda competição ensina-nos que somos entre ameaças e inimigas, e o Sagrado Feminino convida-nos a reconhecer em cada uma putativa companheira de batalha, alguém que partilha das mesmas vulnerabilidades, experiências, traumas, e padrões doentes de expectativas. Acredito que o Sagrado Feminino nos dá a oportunidade de nos definirmos em todos os planos e procuro, nas ações que facilito, trabalhar as relações que nos empoderam e aproximam. A confiança em nós e no poder e mudança que trazemos ao mundo. Esta é a magia do Sagrado Feminino, para mim.

  • Já fizeste e fazes parte de vários projetos dentro da comunidade pagã desde a Pagan Federation (Portuguesa e Internacional) até ao Temple of Inanna. O que consideras ser importante no trabalho para as comunidades? E que recomendações dás a quem gostaria de ter um papel mais ativo? 
Trabalhar para e com as comunidades é uma das muitas vocações do universo religioso e espiritual. Partindo daqui, toda a partilha ou exposição que fazemos do nosso trabalho aos outros, todos os momentos em que tornamos visíveis as nossas práticas e/ou as nossas crenças de forma livre (ainda que com consequências, sejam elas likes ou descriminação), estamos a usufruir de um direito que nos é reconhecido pelos poderes vigentes que permitem e regulam a nossa vida em sociedade: a liberdade religiosa. Podemos, por isso, concluir que quer tenhamos a consciência objetiva de o fazermos ou não, frequentemente representamos as comunidades em que participamos. Quem escolhe fazê-lo de forma objetiva pode fazê-lo de várias formas e com vários graus de intensidade: pode criar e alimentar um projeto informativo acessível ao público (como um blogue/site, uma página, um podcast, um canal de vídeos, uma publicação online ou impressa), pode criar e manter um projecto eu que promova a interação entre pessoas (um fórum, um grupo em redes sociais, discord, etc.) pode criar e manter um projeto que reúna pessoas num formato mais celebratório (festividades abertas), pode criar e manter um projeto que reúna pessoas num formato de trabalho regular (como um Templo, um Círculo, um Coven, etc.), pode criar e manter um projeto que reúna mais do que uma destas opções ou mesmo todas. Assim como todo o ato que praticamos na sociedade é político, toda a partilha relativa às nossas crenças e práticas religiosas e espirituais que fazemos é um ato pedagógico e informativo perante as pessoas que nada conhecem de Bruxaria ou de Paganismo e Politeísmo. Para mim, o que é importante é esta consciência de educação coletiva que qualquer um pode assumir e promover investindo em partilhas que revelem estudo, reflexão e integridade. Cada um de nós tem um palco na sociedade e se o usarmos em consciência, não será só o Paganismo que ganha, toda a Sociedade o fará também.
Temos uma série de projetos que trabalham há anos no sentido de servir a comunidade e outros mais recentes que beneficiaram muito com mais pessoas a entrar e a fazê-los crescer. Aconselho a qualquer pessoa que se interesse por trabalho comunitário a estudar as iniciativas que já existem e a entrar em contacto com as organizações, darem feedback, partilhar as ações e seguir os seus programas, façam perguntas, criem colaborações e organizem ações também. Se o interesse no serviço comunitário só crescer com este investimento e interações, então façam nascer os vossos projectos para a comunidade. A comunidade tem espaço para todas as visões e tradições, e tod@s ganhamos se trabalharmos juntos.

  • Na tua opinião, qual o impacto que as comunidades têm no caminho espiritual de cada um e recomendas, ou não, a participação em grupos ou comunidades alargadas (como nas redes sociais)?
Da minha experiência posso afirmar que os momentos de interação com a comunidade são momentos de viragem e alinhamento de objetivos devido à intensidade e profundo preenchimentos que me causam. Por esse facto, eu recomendo muito a interação e a participação nas comunidades nas ocasiões em que reúnam quem trilha um percurso espiritual/religiosa semelhante, sempre observando os cuidados relativos ao contacto com grupos (mais ou menos fechados) e exigindo a transparência que exigiríamos a um grupo a quem confiaríamos uma criança (a interação é boa, mas a nossa segurança não é negociável).
Tendo em conta o estado atual caracterizado pelas condicionantes herdadas da pandemia, a maior mais valia do nosso tempo é a comunidade online. O universo das redes sociais aproxima-nos de toda a pessoa que tenha uma ligação à internet e aparelho que a suporte. As distâncias são ultrapassadas através da língua franca (o inglês) e no nosso caso temos a facilidade do nos reunirmos em lusofonia com qualquer falante da língua portuguesa.
No período pré-pandemia já tínhamos redes de contacto e grupos diversos que reuniam todo o tipo de pessoas interessadas nas várias tradições pagãs, politeístas, panteístas e do culto da Deusa. Hoje, mais do que grupos de interesse, temos grupos de cariz religioso/espiritual organizados e alguns até institucionalizados que promovem esses locais online de interação e partilha. Torna-se, por tudo isto, mais fácil de entrar em contato com e participar nas comunidades, o que considero profundamente benéfico para os nossos caminhos individuais, no particular, e a pertinência e relevância das comunidades, no geral.

  • De que forma consideras, estando tu envolvida em vários projetos, que a pandemia veio afetar as nossas comunidades e a forma de nos reunirmos em festivais e conferências?
A pandemia veio pôr a nu todas as nossas vulnerabilidades bem como as nossas mais valias. A mais valia das redes sociais e das comunidades online revelou-se a “salvação” para tant@s de nós que se viram privad@s de toda a mobilidade que lhes permitia o contacto com as comunidades offline. E vejamos, proibir praticantes de cultos, que têm a natureza como centro, de saírem de casa, só podia ser duro. E assim foi. Aguardámos que as restrições nos permitissem as visitas aos nossos locais de culto (especialmente aqueles que saiam do concelho de residência), tomámos medidas de segurança, reunimos com máscara, vamo-nos vacinando, e tudo fazemos para nos podermos juntar e reunir para celebrar os nossos dias e noites de poder. 
Mas até essa liberdade nos ser devolvida, fomos isolados das nossas tribos, e essas limitações fizeram nascer uma série de iniciativas online de cariz gratuito por parte dos grupos organizados o que me deixou profundamente orgulhosa das nossas instituições e lideranças de todos os tipos. As respostas que foram dadas às nossas necessidades por quem se dedica ao serviço comunitário e as adaptações que foram feitas um pouco por todo o lado pelas iniciativas de singulares e de grupos, foram extraordinárias e enfrentaram de frente as dificuldades que as comunidades estavam a sentir no que foi uma situação mundial. Conferências adiadas como a Conferência da Deusa organizada pelo Templo da Deusa do Jardim das Hespérides, revelaram esse alinhamento e consciência e mais uma vez, me deixaram com muito orgulho pelas lideranças das nossas comunidades. Iniciativas como os programas gratuitos disponibilizados pelo Glastonbury Goddess Temple durante a semana útil, ou a celebração de festivais online pelo Templo da Deusa do Jardim das Hespérides, ou o Seminário de Bruxaria Contemporânea da colaboração dos blogues Crónicas de uma Mãe Pagã e Sob o Luar, ou o especial Akelarre (Podcast) que se centrou nas (sobre)vivências em confinamento, ou mesmo grupos como o Paganices (Facebook) que alterou as suas regras para permitir a promoção dos negócios dos membros, tudo isto foram respostas que procuraram mitigar as nossas limitações e reforçar a ideia de que o papel das comunidades é este: manter a integração das pessoas que as compõem nos momentos de normalidade e dar respostas de apoio nos momentos de dificuldade. 
Espero continuar a ver estas respostas e a continuidade destas iniciativas não só porque a pós pandemia continua a implicar cuidados extra mas também porque vi projetos a ganharem uma dimensão e maturidade que nos provaram que nos representam bem e que podemos esperar ainda mais e melhor deles no futuro.

  • Quais as recomendações que tens para quem quer começar a aprender sobre Religião da Suméria e as suas práticas modernas?
Qualquer tradição com registos históricos pede que o estudo comece no início e a vantagem das tradições mesopotâmicas, em especial a Suméria e Acádia, é o espólio literário a que temos acesso. É um verdadeiro luxo podermos aceder a estes textos, mitos, hinos, composições e até provérbios. Ler sobre estes Deuses aproxima-nos das interpretações iniciais à sua natureza bem como aos cultos que se desenvolveram anteriormente. Aliás, estudar os glossários retirados dos escritos cuneiformes é uma experiência extraordinária em termos de compreensão dos conceitos que eram norma e os que não eram funcionando como um filtro imediato do que nos distingue do passado. Aconselho sobretudo os sites académicos para este efeito: Electronic Text Corpus of Sumerian Literature (da Universidade de Oxford, UK) e o Electronic Pennsylvania Sumerian Dictionary Project (da Universidade de Pennsylvania, USA).
Em paralelo com as leituras históricas, aconselho a experimentação do culto e a troca de experiências dentro da comunidade: Temple of SumerTemple of Inanna (projectos internacionais online) e Templo de Inanna (culto e organização nacional).

  • A Bruxaria Tradicional Portuguesa e as práticas das nossas avós e bisavós têm um grande impacto em ti. Porque consideras importante dar atenção e destaque a estas tradições?
Sinto uma dívida que também é um orgulho por todas as que na minha família não tiveram voz, nem agência nas escolhas grandes das suas vidas. Porque hoje, eu tenho. Eu tenho poder para tomar grandes decisões como a minha crença, as minhas práticas, as escolhas relativas ao meu corpo e ao meu sistema reprodutor, os meus ideais e ideologias, e sou profundamente grata por tudo isto. Em especial porque posso passar estas expectativas à minha filha também. Por todas as portas que nunca se abriram para as minhas familiares e antepassadas, pelo refúgio que foi a bruxaria nas vidas delas, eu hoje escolho honrar a agência que nunca tiveram, resgatando essa palavra que para elas era sinónimo de esperança velada: bruxa. Neste apropriar que faço a esta palavra, concentro todas as tradições familiares das simpatias, dos conjuros, mezinhas e rezas (algumas adaptadas), o conhecimento das ervas e as receitas que não falhavam. Tenho um grande carinho e sede por todo esse conhecimento dos mais velhos, dessa sabedoria que começou lá para trás e que nos chegou nas vozes e mãos de quem nos ensinou a cuidar e a amar. Tudo isto é continuidade e reconhecimento nesta roda espiralada que nos liga sempre ao centro de tudo. Procuro alimentar estas tradições e mantê-las vivas por elas no meu passado, pelo meu presente e pelo futuro da minha filha, porque para mim ser bruxa é uma vitória e um grito de resistência e resiliência.

  • Tens alguma mensagem que gostarias de deixar para os nossos leitores? 🙂
Quero agradecer este convite e aproveitar para dar os parabéns ao Sob o Luar e em especial à Alexia Moon de quem me orgulho de chamar de amiga e que caminha comigo nas comunidades há quase duas décadas. Se puder deixar um último apelo, faço-o por todas as iniciativas sérias que procuram informar e integrar as nossas comunidades, porque merecem reconhecimento e o nosso apreço e respeito.

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Obrigada à Mariana por ter aceite este convite para a entrevista e pelas palavras doces referente ao Sob o Luar! E vocês leitores, gostaram de conhecer a Alva Möre? Vão aos seus projectos e digam um olá! :) 

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